Quando tem temporal sempre lembro disso. E não, antes que perguntem, eu nunca tive medo de dormir na casa da vó Lucy – pelo contrário, eu adorava. Adorava quando passava uma noite no Esplanada, no 475 apartamento 61 da André Puente.
Eu era bem pequena e sim, isso era no século passado, mas até hoje lembro do número do telefone – fixo, pesado, com fio e com um disco numerado, com pequenos elos pra encaixar os dedos e podermos discar. Quando tocava, alto e estridente, a vó ia até o lugar do telefone, sentava no banquinho ao lado do telefone, olhava pra agenda de papel ao lado do telefone e atendia: “Pronto, 25-59-17”.
(O porquê desse pronto eu nunca soube. Pronto o quê: Pronto, cheguei? Pronto, pára de fazer barulho? Pronto, vou te ouvir? Se alguém souber, me explique)
Lembro de ver temporais olhando pro colégio Bom Conselho da sacada, sacada essa que tinha uma gradezinha e ao pensar nisso agora me parece que era tipo uma grelha protetora branca, quadriculada, com a estrutura fixada por tubos na parte de baixo protegendo os pés e de cima guardando as pessoas. Mas lembro, criança, de bater a testa no tubo de cima, o que significa que essa guarda não guardava adulto algum. Eu deveria ter o que, 7, 8 anos?
Mas também posso estar fantasiando minha idade e altura – ajuda aí, mãe.
Lembro também que nessa sacada tinha uma mesa tri, que foi de várias cores: branca, marrom, verde, preta. Uma mesa de rua que na época era bem estilosa, imagino: o pé e o apoio do tampo uma coisa só, tubular, no mesmo estilo do tubo da proteção da sacada. Certamente era avantgarde, o fino lá no final dos aos 70. Essa mesa, pasmem, pintada, repintada, reformada sei lá quantas vezes e com um tampo de madeira que deve ter mais de 10 anos, mora na casa dos meus pais. Ali servimos os churrascos de domingo e uns lanches fora de hora.
Mas e o medo de dormir na vó afinal, era pega ratão?
Não, porque pensar na casa da vó me traz um sorriso no rosto, enche meu olho d’água, me dá saudade e me lembra de um medo infantil que eu tinha – e descobri que a Mattos também tinha, e descobrirei eu sei que alguns de vocês gaúchos que estão lendo também tinham, tenho certeza.
Saudade eu tenho chocolate Kri com gosto de armário – porque a vó comprava as pequenas barras, altas e bem crocantes, e guardava em diferentes lugares pros netos não comerem muito rápido. O esconderijo que descobri era no armário da sala, lindo, de madeira pesada, lugar perfeito – vai ver foi com Kris amadeirados que comecei a treinar meu paladar pro vinho.
Saudade de pegar o elevador e descer pra comprar torradas de queijo no Joe’s, não comprar bebida e economizar o troco pra levar junto umas revistinhas do revisteiro do lado. Saudade de ouvir a vó lendo e contando historinhas pra eu dormir depois de tomar um bom banho de banheira no banheiro azulejado compriiiiiiido, no final do corredor.
Mas quando eu dormia lá no sábado, lembro que acordava domingo com medo, e algumas vezes demorava pra sair da cama. A vó Lucy levantava cedo, ia pra sala, abria as cortinas, ligava a televisão num volume alto e sentava no sofá pra ver Campo e Lavoura, nesse momento começava a música e eu puxava as cobertas…(dê play nesse link, escute um pouco e se segure pra não ter spoiler se começar a ler o parágrafo de baixo antes de começar a música)
https://youtu.be/aXt7CF7okYY?si=zMgxrmppEYJzOW8S
Escutando o grupo Caverá tocando Homens de Preto hoje eu sorrio e fico feliz, porque lembro de muitas coisas legais, mas naquela época eu confesso que tinha um certo medo. Ironicamente, quase 20 anos depois disso, jornalista formada, fui trabalhar no grupo RBS no…Campo e Lavoura, porém na Zero Hora e não na TV. Tenho certeza que nesse momento a vó Lucy, seja lá onde estivesse, deve ter dito: não é nada, é só uma música, e me dado um beijo com cheiro de talco e Cashmere Bouquet.